“Guerra é ruim, mas sem jornalista é pior”. A frase é de José Hamilton Ribeiro, um dos mais consagrados e premiados jornalistas brasileiros e que, em março de 1968, cobriu a guerra do Vietnã pela revista Realidade. Foi lá que, ao pisar em uma mina terrestre, perdeu parte de sua perna esquerda.
Apesar disso, ele mantém a convicção de que o trabalho do jornalista em zonas de conflito continua sendo fundamental. “Se há uma guerra que não se consegue evitar, então é preferível que se tenha um jornalista nessa guerra. Jornalista na guerra é uma forma pequena, humilde, mas é para pôr a bola no chão e manter o bom senso, sabe? E evitar aquela cabeça do pessoal guerreiro, que fazia guerra por gosto, por sentir prazer na guerra”. Segundo ele, as testemunhas da guerra e os jornalistas que fizeram a cobertura deram um depoimento muito diferente do pessoal que se alinhou ao espírito guerreiro de algumas mentes assim diabólicas, às vezes”, disse ele, em entrevista à Agência Brasil e à TV Brasil.
Depois de anos à frente do Globo Rural, José Hamilton Ribeiro agora vive mais recluso, pelo interior mineiro – Foto Henrique Almeida/ Agecom/UFSC
Notícias relacionadas:Exposição em SP mostra computação quântica e inteligência artificial .Mostra Sesc de Cinema recebe inscrição de filmes até o próximo dia 22.Depois de anos à frente do Globo Rural, José Hamilton Ribeiro agora vive mais recluso, pelo interior mineiro. Nesta semana, ele visitou o Museu da Imagem e do Som (MIS), na capital paulista, para uma dupla celebração: a inauguração da exposição O Gosto da Guerra, com imagens produzidas por jornalistas e fotógrafos em áreas de conflito, e o relançamento de seu livro de mesmo nome, em que relata a cobertura da Guerra do Vietnã.
No livro, ele descreve o que era “gosto da guerra”, que sentiu profundamente logo após ter pisado acidentalmente em uma mina terrestre. “Sentia na boca um gosto ruim, com se tivesse engolido um punhado de terra, pólvora e sangue – hoje eu sei, era o gosto da guerra”.
“Essa expressão veio a mim num momento, lá no Vietnã, em que senti que tinha acontecido alguma coisa comigo, mas não sabia exatamente o que era. Quando recuperei a consciência, estava sentado e em uma realidade que eu não estava dominando, não sabia qual era, não sabia o que tinha acontecido direito. Uma hora ali, senti uma sensação estranha aqui na testa, passei a mão e vi que tinha uma coisa molhada, líquida, olhei e era sangue. Pensei: ‘puxa vida, um ferimento na cabeça. Para gerar sangue e para sujar a mão assim é sinal de que foi um ferimento grande. Estou morrendo’. Tive a sensação de que ia morrer”, contou aos jornalistas da Empresa Brasil de Comunicação (EBC).
Foi aí que percebeu que seu maior ferimento, no entanto, não era na cabeça. “O enfermeiro começou a fazer curativo daqui, curativo dali. No fim das contas, o ferimento tinha sido pequeno. Foi mais o barulho da explosão e a sensação de insegurança que veio com aquilo. De repente, estava sentado no chão, sem saber por quê. Fiquei inseguro em relação ao que tinha acontecido. Então, demorou algum tempo até que alguém me ajudou a completar a realidade que estava vivendo naquele momento, que no começo era tão confusa para mim”.
O que aconteceu no Vietnã há mais de 50 anos deixou marcas profundas – e não lhe escapou da memória. Ainda hoje, ao observar as fotos feitas pelo fotógrafo japonês Keisaburo Shimamoto, que o acompanhou no Vietnã e registrou esse episódio para a revista Realidade – mostrando-o caído ao chão, envolto em muito sangue – ele se recorda exatamente do que aconteceu.
“Sempre ficou uma ‘lembrançazinha’, uma ‘fumaçazinha’, uma coisa que se inventa na memória. Mas isso não impediu que eu continuasse a vida ali e continuasse trabalhando como repórter”, afirmou.
A imagem feita por Shimamoto, retratando José Hamilton logo após ter perdido a perna em uma mina, é uma das fotografias que estão em exposição na mostra, que entrou em cartaz no MIS. Há também imagens produzidas pelo próprio jornalista, em que ele apresenta crianças sorrindo em meio à guerra.
“Eu estava no Vietnã lidando com um problema terrível, que era a guerra, um problema de perda, e de repente conheci crianças, vi crianças lá que, no meio de toda aquela tristeza, daquela pobreza e daquela amargura, brincavam. Brincavam uma com a outra, independentemente da situação que os homens não conseguiam controlar”, comentou.
A exposição
Com curadoria de Teté Ribeiro, filha do jornalista, a exposição O Gosto da Guerra apresenta imagens registradas por José Hamilton Ribeiro e pelo fotógrafo que o acompanhou naquela cobertura, o japonês Keisaburo Shimamoto.
A mostra destaca ainda o trabalho de mais cinco correspondentes de guerra do século 20, que cobriram conflitos ocorridos na Ucrânia, em Moçambique, no Iraque e em El Salvador, entre outros. São fotografias produzidas por André Liohn, Hélio de Campos Mello, Juca Martins, Leão Serva e Yan Boechat e que mostram os custos humanos envolvidos em uma guerra.
“Essa é uma mostra comemorativa de O Gosto da Guerra, que meu pai escreveu em 1969. Esse livro foi escrito antes de eu nascer, o acidente aconteceu antes de eu nascer, e ele está sendo reeditado agora pela Companhia das Letras, numa coleção chamada Jornalismo Literário. O livro não tem muitas fotos, mas a reportagem do meu pai ficou muito marcada fundamentalmente por uma imagem, que foi, infelizmente, a dele ferido no Vietnã. Para complementar [a exposição], a gente chamou mais cinco fotógrafos brasileiros que cobriram conflitos na segunda metade do século 20. Tem até uma [imagem] do século 21, que é, infelizmente, da guerra que está acontecendo atualmente na Ucrânia”, explicou a curadora.
Jornalista José Hamilton Ribeiro gravemente ferido durante reportagem na Guerra do Vietnã em julho de 1969 – Keisaburo Shimamoto/Divulgação
Ao trabalhar com a reedição do livro escrito por seu pai e na curadoria dessa exposição, Teté revela que começou a sentir o sofrimento que ele enfrentou na guerra. “Eu conhecia só a história do sofrimento da minha mãe [do que ela havia enfrentado enquanto o pai estava na guerra]. A história do sofrimento do meu pai, do quanto doeu fisicamente, do quanto achou que ia morrer, do quanto chegou perto de morrer, acho que só entendi nessa reedição do livro. E isso foi chocante”, contou.
“Ninguém acha que pai e mãe vão morrer ou sofrer. Ou que tenham sofrido antes de você nascer. Você nem acha que eles existem antes de você nascer. E agora que sou adulta, tenho filha e meu pai está mais velho, esse sofrimento me causou um choque e uma dor terrível. Adorei a experiência de ter revisitado isso, mas não tem nenhum lado bom. Foi horrível, um acidente terrível. Se há alguma coisa que dá pra falar que é boa em toda essa pesquisa, é que ele está vivo, que a gente está vivo, estamos juntos e continuamos lutando”, disse Teté.
A exposição, com entrada gratuita, fica em cartaz no MIS da Avenida Europa até o dia de 26 de julho. Mais informações podem ser obtidas no site.